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quarta-feira, 13 de agosto de 2008

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Estima...

É sábado e as polidas mesas de mármore já refletem mais rostos despreocupados que paredes sorridentes. O fluxo de pessoas intensifica-se enquanto, lá fora, o sol ensaia sua dança poente. Pessoas dispersas, sem objetivo, desfilam pelo chão de aparência lisa, designado a retardar os passos dos consumidores em potencial, enquanto as cores por trás das límpidas vidraças absorvem seus olhares.
Elas não fogem à regra. Caminham sobre seus caros saltos com um excesso de elegância pejorativa, sempre a tecer comentários sobre a simplória moda das pessoas mais humildes, e arregalar os olhos por cada boutique pelas quais passam. Decidem sentar. A essa hora, já são poucas as cadeiras azul-piscina disponíveis em mesas bem alocadas. Olham uma para a outra e cerram o semblante num gesto de desaprovação por terem que dividir aquele espaço com toda aquela "gentinha".
Nathalia e Nicole eram garotas provenientes de famílias nobres.
A primeira era alta e esbelta. Tinha olhos de um tom intermediário entre verde e ocre, altivos. Usava um vestido preto decotado que salientava as jóias em seu pescoço e orelhas, e combinava o batom e o esmalte com sua pele marfim e seu longo cabelo negro. Já a outra, era um pouco mais baixa. Vestia uma calça apertada e uma blusa colada em uma vã tentativa de ocultar as medidas que lhe sobravam nos culotes. Possuia um cabelo nitidamente alisado, olhos graúdos e a pele do rosto disfarçadamente marcada pelas espinhas que sucumbiram aos tratamentos caros e cremes de luxo. Usava anéis dourados e espalhafatosos, junto a um colar, também dourado, que desenhava sobre seu pescoço todo o fajuto glamour que exalava o seu nome.
Ambas nasceram em lares nos quais sempre foi cultivada a idéia de que o dinheiro resolveria todos os problemas e compraria todas as coisas. Não sabiam que o suor era uma moeda muito mais valiosa que um simples estalar de dedos, nem imaginavam que todas aquelas bonecas e jogos jamais preencheriam o vazio deixado pelo tempo que seus pais se recusaram a dispor com diálogos e afagos. Eram pessoas tristes, dignas de pena. Tristes por sequer saberem o quanto sofriam e acharem que tudo poderia ser solucionado com a afirmação do próprio ego.
Sentam em uma mesa com resquícios do lanche de um casal que acabara de levantar, fazem cara de nojo e esperam por alguém para limpar aquilo, enquanto seus namorados peregrinam em busca de outras duas cadeiras livres. Avistam uma zeladora ao longe e uma delas levanta a mão em um gesto de pouco caso.
Maria Clara não era o tipo de mulher de chamar a atenção pela aparência. O uniforme laranja berrante a deixava vistosa na mesma intensidade com a qual apagava o brilho de qualquer elegância; o cabelo castanho melindrosamente amarrado em um coque não disfarçava a ligeira desproporção de suas orelhas para o tamanho do rosto. Tinha olhos vivazes e espertos e uma pele mulata resultante de sucessivos dias de caminhada até a parada de ônibus. Exprimia prontidão e prestatividade no seu semblante e chegou à mesa exibindo um sorriso prazerosamente serviçal, improvável para alguém que passou a semana toda trabalhando de 10 às 22 horas e teve que pagar horas extras no fim de semana.
Incomodada, Nathália retribuiu com um olhar de desdém àquela atitude. Sempre foi assim, e só sabia viver assim, pisando em cima das pessoas com a arrogância e prepotência inerentes ao seu ser. Porque só dessa forma ela podia sentir-se um pouquinho mais viva, ao parasitar a felicidade dos outros e erguer-se com o sentimento momentâneo de que era intocável, mesmo que depois voltasse a se ver mais sozinha que jamais estivera.
Maria Clara deixou-se abalar. Seu olhar, em frangalhos, refletiu uma certa tremulidade em suas mãos ásperas, mas com esmalte bem desenhado, e ela deixou cair um copo da bandeja. Nicole, que até então procurava algo para bajular a amiga, enxergou no pequeno vacilo uma oportunidade de promover-se. Não consegue fazer nada direito - resmungou.
As lágrimas chegaram ao limiar de seus olhos, mas Clara as conteve categoricamente; pensou na sua árdua rotina, que sequer via anoitecer o dia e só sentia o tempo passar ao olhar os relógios de parede distribuídos entre as lojas. Teve vontade de mandar tudo para o ar, demitir-se e dizer poucas e boas àquelas patricinhas, mas lembrou-se de seu pai que recebia uma pequena ajuda do INSS e sua mãe que era dona de casa. Eles precisavam dela, e aquelas sanguessugas não valiam a pena toda aquela fúria.
Apanhou cautelosamente o copo do chão, empertigou-se e tornou a sorrir, antes de fazer menção de retirar-se. As meninas, perplexas, sentiram-se esmiuçadas por aquele sorriso, de alguém que possuía tão pouco, e então puderam entender que o dinheiro que obtinham podia comprar um namorado descolado com um carro esportivo, e que aquilo lhes renderiam convites VIPS e status social, entretanto, jamais poderiam subjugar a felicidade aos cifrões.
Maria Clara choraria mais tarde, ao contar a história no colo da mãe que lhe afagaria os cabelos e a consolaria como só as mães de verdade sabem fazer, então ela levantaria com a esperança renovada nos olhos, pronta a seguir em frente na luta pelos seus objetivos.
Por outro lado, as garotas continuariam abaladas por aquele sorriso, por alguém que teve a coragem de enfrentá-las da maneira mais autêntica e eficaz possível, com a humildade que elas tanto odiavam. E continuariam, sem rumo, cuidando da casca enquanto o interior se decompunha aos poucos em suas medíocres vidas de aparências.

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