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quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

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Se...

O garfo arranhava o prato translúcido e azulado, enquanto eu degustava lentamente uma rabanada remanescente da virada do ano. Na pia que desenhava um "L" ao encontrar-se com os azulejos indefinidamente coloridos da cozinha, descansava uma tigela que viria a ser preenchida com alguma sobremesa gelada repleta de pêssegos. Era apenas outra noite arejada de janeiro, com o céu espremido por entre as frestas do jardim de inverno e o vento como maestro do farfalhar compassado das plantas. Eliza começava a organizar as camadas de biscoitos e leite condensado quando começamos a conversar; eram palavras distraídas, que flutuavam com facilidade na corrente de ar. Foram encorpando, ganhando formas, e quando não conseguiam mais levantar vôo, apenas caíram salgadas no chão. E ali permaneceram, a sobremesa doce, a lágrima salgada e o meu olhar insípido a procurar por uma reação instintiva e sensata.
Então eu pude perceber que as lágrimas não são sinais de fraqueza, e sim vestígios de uma relação intensa, e que a morte e a perda podem ser aceitas, e até superadas, mas as coisas jamais serão as mesmas. Porque nós, humanos, temos uma aguçada mania de hipótese. De viver como se nunca fossemos morrer, mesmo que essa seja a maior certeza que possuímos. Talvez seja isso o que faça tudo valer à pena: a intensidade, o apego. Aglomerar momentos marcantes e situações memoráveis, isso sim é eterno. É o que nos permite imaginar os quão melhores e mais especiais seriam algumas circunstancias que vivemos sozinhas, se 'aquela' pessoa estivesse conosco.
Um afago na cabeça, e os mensageiros dos ventos ressoaram qualquer melodia reconfortante. Permanecemos algum tempo sem palavras, a pescar lembranças. Eu pensando duas semanas à frente e três anos atrás, e ela em um tempo que não consigo esclarecer... Cada um ao seu modo, relembrando momentos incrustados nas paredes da memória.

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